quarta-feira, 27 de janeiro de 2010


Nas vésperas da insurreição do 31 de Janeiro, enquanto os jornais de Lisboa clamavam ainda contra o Ultimatum, oficiais do exército eram inusitadamente deslocados de unidade. No dia 27, o alferes Simões de Almeida, a prestar serviço no Batalhão de Caçadores 9 aquartelado no Porto, foi transferido por ordem do Ministro da Guerra para o Regimento de Infantaria 24, sedeado em Pinhel. Os jornais da cidade Invicta publicaram de imediato a notícia, invectivando contra a violência das autoridades militares que se abatia fundamentalmente sobre os oficiais de baixa patente.
A insatisfação que grassava no meio militar, mais concretamente entre os sargentos, deu origem a reuniões secretas, como aquela que decorreu numa casa da rua do Laranjal presidida pelo alferes Simões Trindade que, para além de ter a confiança absoluta dos sargentos, com eles cooperava no movimento da revolta. Os militares presentes estavam indignados porque o governo não queria respeitar a legislação vigente sobre as promoções na carreira. Assim, para além de subscreverem a petição enviada de Lisboa, aprovaram uma minuta de um documento que era um verdadeiro ultimato ao governo, ameaçando com a sedição caso a lei não fosse respeitada, recorrendo até ao uso das armas.
Na reunião da rua do Laranjal compareceu também o sargento-ajudante de Infantaria 8, Artur Ferreira de Castro, que obtendo uma cópia do documento, a entregou aos seus superiores que logo a fizeram chegar ao ministério da tutela. O futuro dos conspiradores ficara assim definido e as transferências quase imediatas dos sargentos comprometidos com o movimento aceleraram a insurreição. Santos Cardoso e Alves da Veiga, conscientes do desassossego dos sargentos e convencidos de que não conseguiriam por mais tempo adiar a eclosão da revolta, trataram de, no mais curto espaço de tempo, confirmar os apoios que viriam de fora do Porto.
Assim, a 30 de Janeiro, aqueles dois republicanos decidiram entregar a direcção da revolução ao General reformado de Engenharia, Correia da Silva, que aceitou o encargo com a condição de que à frente das tropas revoltosas estivessem oficiais. Nesse mesmo dia, dois encontros foram realizados. Um na rua do Malmerendas, em casa de uns parentes do General, onde estiveram presentes os oficias que tinham aderido à causa, bem como civis que dariam corpo ao projecto revolucionário. Na rua da Alegria, reuniam-se setenta sargentos para decidirem como lidar com o velho general, uma vez que receavam que este fosse a favor do adiamento da revolta. Da rua da Alegria seguiram para a rua do Malmerendas, sendo recebidos pelo General Correia da Silva. Juntos concordaram que o movimento rebentaria de madrugada. Como faltasse um plano revolucionário, nova reunião foi marcada, desta vez para as 10 horas da noite, na rua de Santa Catarina. Apesar de vários oficiais terem sido convidados, apenas compareceram o velho General Correia da Silva, Alves da Veiga, Santos Cardoso, o Capitão Leitão, alguns sargentos, um alferes da guarda-fiscal e diversos civis. Foi então que o General e o Capitão Leitão discutiram o plano revolucionário. Enquanto o General entendia que as tropas deveriam concentrar-se na Praça da Batalha para tomarem o quartel-general, o governo civil e o “telégrafo”, aí localizados, o Capitão Leitão achava que a concentração dos militares deveria fazer-se no Campo de Santo Ovídio, argumentando com o facto de os revolucionários serem obrigados a vencer uma possível resposta negativa da parte do quartel do Regimento de Infantaria 18. Santos Cardoso, pondo-se ao lado do Capitão Leitão, fez vingar a ideia da concentração das tropas em Santo Ovídio. Combinaram, ainda, que a detenção das autoridades civis seria realizada pelos civis presentes. O General Correia da Silva só seria chamado a Santo Ovídio se não aparecessem oficiais superiores.
Finda a reunião, Alves da Veiga e outros companheiros dirigiram-se para a loja maçónica Grémio Independência, que passaria a funcionar como “quartel-general” da revolução. Na cidade circulava já a notícia de que a insurreição estaria para breve e, num reservado do Café Suisso, um grupo de republicanos preparava o manifesto: Aos camaradas do Norte e Sul de Portugal; aos cidadãos do Porto; aos cidadãos portugueses! que anunciava a substituição da Monarquia pela República.
Porém, enquanto os conspiradores ultimavam a preparação da revolta, as autoridades civis e militares portuenses preparavam o contra golpe, depois do governador civil ter sido alertado para a insurreição que se preparava. Foi então que Joaquim Taibner de Morais, o então Governador Civil do Porto, reuniu no quartel do Carmo com o comandante da Guarda Municipal. Juntos decidiram que, sem grande aparato, aquela força pública vigiaria os quartéis militares suspeitos. O Governador Civil e Comandante da Guarda Municipal foram parlamentar com o comandante interino do Regimento de Infantaria 18 e este ordenou aos seus oficiais que exercessem a maior vigilância possível sobre as suas companhias. Porém, aos comandantes do Regimento Infantaria 10 e do Batalhão de Caçadores 9 nada foi transmitido.
Terminada a reunião na rua de Santa Catarina, os sargentos conspiradores dirigiram-se aos seus quartéis para tomarem as providências necessárias à saída das tropas. O primeiro a dar sinal foi o Batalhão de Caçadores 9 que, comandado pelos sargentos, subiu a rua de São Bento em direcção à Cadeia da Relação onde estacionou. Aqui, os sargentos pediram ao Alferes Malheiro, nessa hora em serviço de guarda àquela cadeia, para assumir a chefia do Batalhão. Já sob o comando do Alferes, os Caçadores 9 dirigiram-se para Santo Ovídio onde se lhes reuniria a Infantaria 10 liderada pelo Capitão Leitão.
No Campo de Santo Ovídio, onde se localizava o quartel de Infantaria 18, os dois regimentos formaram de modo a circundarem o quartel. Soldados e populares, que entretanto se foram juntando, davam vivas à República e àquele regimento de infantaria incitando-o a aderir à rebelião. Do quartel de Infantaria 18 saiu o destacamento de Cavalaria 6, aí alojado, que se juntou às tropas rebeldes, ao mesmo tempo que convergia para Santo Ovídio a Guarda-fiscal. Pelas quatro da manhã quase todas as forças rebeldes estavam reunidas, aguardando só pelos soldados de Infantaria 8, para se iniciar a marcha contra o inimigo monárquico representado, no Porto, pela Guarda Municipal.
Porém, no quartel do Regimento de Infantaria 18, para o lado dos rebeldes as coisas não estavam fáceis. Um dos sargentos deste regimento, que assistira à reunião na rua de Santa Catarina, recebera voz de prisão ao regressar ao quartel, tendo contudo conseguido passar a informação. Por seu lado, o comandante do regimento tentava dissuadir de aderirem à revolta as tropas já perfiladas na parada, procurando também informar-se sobre as forças estacionadas no Campo de Santo Ovídio. Foi então que os sargentos do regimento comprometidos com a revolta forçaram a saída de quase duas companhias.
Estavam reunidas as tropas possíveis, a que se juntava um número cada vez maior de populares aclamando a revolução. A Guarda Municipal, que vigiara silenciosa, retirou-se para a Praça da Batalha para junto do quartel-general e do edifício dos correios.
Foi então que populares, juntamente com soldados da Infantaria 10 e Caçadores 9, entraram em acção ao pretenderem forçar a porta do quartel. O actor Miguel Verdial, um dos conspiradores que se encontrava presente, procurou segurar a raiva dos invasores, oferecendo-se como mediador entre os revolucionários e o comandante do regimento. O quartel de Infantaria 18 era habitado por muitas famílias. Com Miguel Verdial entraram no quartel Santos Cardoso, o Capitão Leitão e mais uns tantos civis. Santos Cardoso invectivava o Coronel Lencastre a aderir à República e o Capitão Leitão pedia-lhe que acompanhasse os revoltosos. Apesar do Coronel nunca se comprometer, o Capitão Leitão comunicava às forças sublevadas a adesão do Regimento de Infantaria 18 e o Campo de Santo Ovídio era mais uma vez observado por homens da Guarda Municipal.
Era já madrugada quando as forças revolucionárias, ao som da Portuguesa, se dirigiram para a Praça de D. Pedro, onde deveriam ocupar os Paços do Concelho, proclamando a República. Na rua do Almada, as janelas abriram-se e fazendo eco com o povo nas ruas lançavam gritos de apoio à República. Pouco passava das 6 da manhã quando se abriram as janelas do edifício camarário, assomando a uma delas Santos Cardoso dando vivas à República, aos exército e aos revoltosos, ao mesmo tempo que agitava a bandeira do Centro Democrático Federal 15 de Novembro. Noutra janela, Alves da Veiga proferiu o discurso da aclamação da República e Miguel Verdial anunciou a constituição do Governo Provisório do qual constavam os nomes de Rodrigues de Freitas, Joaquim Bernardo Soares (Juiz desembargador), José Maria Correia da Silva (General), Joaquim Azevedo Albuquerque (Professor da Escola Politécnica do Porto), José Ventura dos Santos Reis (médico), Licínio Pinto Leite (banqueiro), António Joaquim de Morais Caldas (professor) e Alves da Veiga. Uma multidão em delírio ocupava a Praça de D. Pedro, ovacionava o futuro Governo Provisório, dava “vivas à República”.
Porém, o Regimento de Infantaria 18 não se juntara às forças revoltosas. O Capitão Leitão apercebeu-se então de que os soldados e os sargentos insurrectos tinham sido traídos. Só três oficiais marcaram presença. Os soldados, por seu turno, queriam acção e como a polícia municipal tinha ocupado a Praça da Batalha, vozes dispersas aconselhavam a que a Praça fosse ocupada.


Na Praça de D. Pedro, um popular abeirou-se do Capitão Leitão para lhe comunicar que, na Praça da Batalha, a Guarda Municipal estacionara vigilante, tornando-se necessário escorraçá-la dali para ser possível a ocupação do quartel-general e dos correios. Um outro popular aconselhou-o a fraccionar as forças do seu comando. Porém o Capitão, acreditando numa adesão dos Guarda Municipais, mandou que as tropas subissem a rua de Santo António em direcção à Praça da Batalha, onde pensava poder dialogar com o Subchefe do Estado Maior, Fernando de Magalhães, pessoa grata aos revolucionários.
Enquanto as forças rebeldes subiam a Rua de Santo António, acompanhadas por uma imensa multidão quase em festa, a Guarda Municipal formava no cimo da rua, nas escadarias da Igreja de Santo Ildefonso, com as armas apontadas para a coluna militar. Apercebendo-se do facto, o Capitão Leitão, à frente dos seus homens, levantou os braços como querendo dizer que a acção dos sublevados era pacífica, mas de nada lhe valeu a simbologia do gesto. A Guarda Municipal descarregou sobre a multidão, lançando o pânico entre os militares e entre populares que se aglomeravam na rua de Santo António. A confusão foi enorme. A coluna militar desfez-se e soldados misturaram-se com civis. Pouco tempo depois, a rua de Santo António estava juncada de corpos inanimados e dos despojos das vítimas. O Capitão Leitão, ferido na cabeça, procurou o cessar-fogo. Não conseguiu. A Guarda Municipal continuava a metralhar. Enquanto tiveram munições, soldados da Guarda-fiscal e dos Caçadores 9 conseguiram ripostar. A Infantaria 10, que se encontrava no fundo da rua de Santo António quando começara a tiroteio, recuara até aos Paços do Concelho, onde se lhe juntaram os outros militares. O Capitão Leitão, com as forças reagrupadas na Câmara Municipal, tentou uma última ofensiva, mas era já tarde pois as forças fiéis à Monarquia atacaram a tiro os revolucionários encurralados, acabando por arrombar a porta do edifício camarário. Derrotado, o Capitão Leitão abandonou os Paços do Concelho.
A República durara duas horas.
Oficialmente a insurreição do 31 de Janeiro provocou dez mortos e um significativo número de feridos entre militares e civis, homens e mulheres. Alguns feridos vieram a falecer posteriormente. A 1 de Fevereiro, o jornal O Primeiro de Janeiro publicava uma lista dos mortos bem como dos sinistrados assistidos nos vários hospitais portuense.
Logo na tarde do dia 31 de Janeiro, o Governador Civil do Porto fez publicar um edital suprimindo todas as liberdades individuais e o Governo Monárquico proibiu a circulação dos jornais republicanos, mais concretamente daqueles que estavam solidários com os revolucionários.
A 2 de Fevereiro, o Governo publicou vários decretos entre os quais aquele que entregava à competência dos tribunais militares o julgamento do crime de rebelião, cometido pelos revolucionários do 31 de Janeiro. Porém, temendo uma reacção popular, ordenou que os conselhos de guerra se realizassem a bordo de navios de guerra fundeados no porto de Leixões. Os detidos ficaram alojados num velho pontão incapaz de navegar e os tribunais militares funcionaram no barco de transporte Índia, na corveta Bartolomeu Dias e no vapor da Mala Real Moçambique.
Foram julgados no Moçambique, entre outras personalidades republicanas, o jornalista João Chagas, Santos Cardoso, Capitão Leitão, tenente Coelho, Miguel Verdial, Aurélio da Paz dos Reis. O tribunal militar para as praças de infantaria 18 e 10 reuniu na corveta Bartolomeu Dias e na Índia ouviram a sentença final o Alferes Trindade, a que mais tarde se juntou o Tenente Coelho transferido do Moçambique, e os soldados da Guarda-fiscal. Alves da Veiga, Sampaio Bruno e Basílio Teles conseguiram fugir para o exílio.
A decisão dos julgamentos militares estava definida à partida e nenhum dos detidos desconhecia que, por ordens superiores, independentemente do que fosse apurado, seria condenado. Terminados os julgamentos, os conselhos de guerra condenaram à pena de prisão maior celular ou, em alternativa, ao degredo para as colónias africanas, mais concretamente Angola, João Chagas, Santos Cardoso, Miguel Verdial, Capitão Leitão, para só apontar as personalidades mais conhecidas. O Tenente Coelho foi condenado a 5 anos de degredo e os restantes implicados sofreram penas variáveis, como deportação militar, degredo ou prisão.
Os regimentos de Caçadores 9 e de Infantaria 10 não ficaram incólumes. O Governo pura e simplesmente extingui-os.

Nota:
a produção dos textos sobre o 31 de Janeiro de 1891 foi possível graças à consulta da obra A revolução Portuguesa: o 31 de Janeiro, de Jorge D’Abreu, publicada pela Biblioteca Histórica (Popular e Ilustrada), em 1912. Esta obra está disponível online.

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